Roberto Drummond faleceu em 2002 em Belo Horizonte. Grande poeta e escritor mineiro. Escrevia uma coluna no jornal Folha de São Paulo quando coletei esse pequeno conto num dua qualquer do início dos anos 80 quando eu residia em Brasília. Com o intuito de sempre preservar a memória dos nossos poetas compartilho com vocês!
Senhoras e Senhores: lamento ter que informar que, neste exato momento,
uma moça brasileira está morrendo.
Ei-la no calçadão da avenida, a cabeça deitada na perna do pai, no meio
de buzinas, do vozerio dos camelôs e dos cambistas que anunciam a sorte grande.
_mas ela é uma moça tão sem sorte, tem 18 anos, negros cabelos, pele
morena e daqui a pouco vai morrer.
Não, não pensem que é uma moça que veio do nordeste, não. Ou que perdeu
seus pertences numa cheia do sul, não. O nordeste da moça é por aqui mesmo: é
onde desabam as tempestades, mas nunca chega a bonança.
Ao lado da moça que vai morrer, vítima de uma misteriosa doença, um
menino, aprendiz de camelô e de trombadinha, tenta atrair a atenção dos que
passam: diz que a moça vai virar santa. Mas todos apressam o passo e, pela
expressão que fazem, é como se rezassem:
_São Joãozinho Trinta, santo e pecador da alegria brasileira, uma festa,
cheia de plumas e paetês, nos dai hoje...
Ah, o São Joãozinho Trinta faz o milagre, porque logo ali adiante, na
loja de discos, Pepeu Gomes canta em ritmo de festa, exala o seu lado feminino
(que não fere o masculino) e dá um salve à alegria.
Quanto a mim, posto-me ao lado da moça e do seu pai, e fico ouvindo o
diálogo dos dois. Que é assim:
Moça que está morrendo: _Pai,...
_O que é minha filha?
_Estou com vontade de comer geleia de maracujá, pai...
_Mas você nunca comer geleia de maracujá minha filha...
_Mas eu queria comer é geleia de maracujá, pai...
_Geleia de maracujá nem existe, minha filha...
_Existe, pai, escuta, pai...
_ O que é, minha filha?
_ Estou com vontade de dançar, pai...
_Mas você nunca gostou de dançar, minha filha...
_`Por isso mesmo, pai. Eu queria usar um vestido bonito. Um vestido que
os homens iam me olhar e
achar que eu era uma flor azul e verde...
_Mas você nunca foi uma flor, minha filha, por que agora você quer ser
uma flor?
_Por isso mesmo, pai, porque eu nunca fui uma flor. Mas os homens iam me
olhar e iam pensar numa flor...
_Você nunca falou assim antes, minha filha...
_ É, nunca falei. Eu queria dançar uma valsa, pai...
_Uma valsa, minha filha?
_É, pai...
_Mas você nunca dançou uma valsa antes, minha filha,...
_Por isso mesmo que eu queria dançar, pai...
_Está bem, minha filha...
_Está tocando uma valsa, pai...
_É, minha filha,...
_Está havendo uma festa, pai...
_Está minha filha...
_Todo o Brasil está na festa, pai?
_Está minha filha...
_Que bom, pai...
Senhoras e Senhores: lamento muito ter que informar que, nesse exato
momento, enquanto Elba Ramalho canta na loja de discos e o Brasil parece feliz,
uma moça brasileira acaba de morrer, deitada na perna do pai, mas se sentindo
uma flor, uma rara flor do Brasil.
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