Na Poli, as várias técnicas de cola eram uma instituição, trapacear era natural; os alunos acabavam a prova e as fórmulas, de origem misteriosa, já eram esquecidas
Em 2002, comecei a cursar engenharia na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Tinha passado os últimos dois anos do colegial obcecado por notas e vestibular.
O colégio onde fiz o ensino médio, o Agostiniano Mendel, estimulava os alunos a estudarem para as provas através de rankings de classificação, que serviam para definir em qual sala cada um ficaria. Entrei completamente no jogo. Raramente conversava com amigos fora do colégio, saía pouco, dificilmente pesquisava assuntos não relacionados ao vestibular -sentia culpa por estar perdendo um tempo precioso. Fiz uma lista de livros e filmes que poderia ler e assistir quando finalmente passasse no vestibular.
Não sabia qual curso escolher. Meu melhor amigo tinha um primo engenheiro com um belo emprego corporativo. Como eu era bom em exatas, por que não garantiria uma carreira promissora?
Apaixonei-me pelo campus da USP. Fui a festas. Tive alguns amores uspianos. Até remo pratiquei.
Na Poli, as semanas de prova guiavam as vidas dos alunos. Todos entravam no ciclo básico e, de acordo com a sua classificação, escolhiam as especialidades. Ou seja, a competitividade do colegial seguia. Eu nunca tinha tirado uma nota vermelha na vida até a primeira prova de álgebra linear. Percebi que jamais seria um dos primeiros do ranking e me sentia cada vez mais desmotivado.
As coletâneas de provas de anos anteriores, vendidas no xerox do grêmio, eram muito disseminadas. Estudávamos através delas, muitas vezes sem saber de onde surgiam fórmulas e técnicas. O objetivo era passar nas provas, não aprender. Era tão grande a pressão por notas, e as disciplinas tão desconexas, que trapacear era algo natural.
Colas: escritas sutilmente nas antigas carteiras de madeira, com uma leve passada de borracha para disfarçar. Em papeizinhos escondidos no estojo, na caneta, no bolso. Escritas no braço ou nas sofisticadas calculadoras HP, nas quais armazenávamos páginas de fórmulas. Papéis que passavam de um estudante para o outro. E o bom e velho cochichar.
Tínhamos uma ética própria na arte da cola: jamais dedávamos alguém em nossa tática de guerrilha contra um sistema de avaliação maluco. E bastava terminar a prova para que todas aquelas fórmulas e técnicas vazias abandonassem a mente.
Em 2005, estava no quarto ano, em engenharia mecatrônica. Estagiava há dois meses em um banco. Ia para a Poli de tarde com uma roupa social que me dava um ar sério.
Ao dar uma aula-trote na semana de recepção dos calouros, percebi o quanto tinha me afastado do amor que eu tinha pela ciência e como o meu conhecimento era superficial -fiquei em silêncio e, estarrecido, abandonei a sala.
O tédio imperava no estágio. Fazia com indiferença os cursos do banco: trabalho em equipe, influência, negociação... No computador de trabalho, escrevia textos de ficção. Na Poli, fazia as provas e tirava as notas suficientes de sempre.
Até que, um dia, fui pego colando em uma prova de eletrônica digital. "É, João. A vida não é fácil", disse o professor. "Mas não é impossível", pensei. Fiquei profundamente feliz por ser pego, tive certeza de que ali não era meu lugar.
Abandonar a Poli foi difícil. Outro aluno também foi pego passando a resolução de um exercício. O professor decidiu nos vincular: um só passaria se o outro também passasse. Mesmo tendo desistido, fiz as aulas e as provas. Fui aprovado com 5,0.
Saí com a consciência tranquila e passei em último lugar no curso de audiovisual da USP. Estou formado há um ano e creio que, apesar do difícil mercado de trabalho, estou na área certa. Sinto maior liberdade para pensar e me expressar. Uma escolha errada não precisa acabar com uma vida inteira.
Preparo-me para fazer mestrado. Quero ser professor. E tenho certeza de uma coisa: se um dia tiver de aplicar provas, elas terão consulta.
João Henrique Aurichio Crema, 28, é formado em audiovisual pela USP. É um dos diretores da série "Três por Cento" (facebook.com/3porcento)
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