"Vivendo e aprendendo Gestão Pública"
(um dia tudo será possível!)
Fonte: Revista Fundap - Governo do Estado de São Paulo
Francisco Longo é um dos mais respeitados especialistas em gestão de recursos humanos e desenho organizacional de instituições públicas. É professor e diretor do Instituto de Dirección y Gestión Pública (IDGP) da Escuela Superior de Administración y Dirección de Empresas (Esade), de Barcelona. Em 2004, lançou – pela editora espanhola Paidós – o livro Mérito y flexibilidad: la gestión de las personas en las organizaciones del sector público. Em 2005 veio ao Brasil para abrir o seminário “A gestão de pessoas no setor público”, promovido pelo governo do Estado de São Paulo, pela Seccional SP da Associação Brasileira de Recursos Humanos e pelo Conselho Nacional dos Secretários de Administração. Na ocasião, concedeu a seguinte entrevista, na qual identifica alguns caminhos para o aperfeiçoamento das organizações públicas, crescentemente pressionadas a aumentar sua eficiência e oferecer melhores resultados.
Longo. A gestão de pessoas não pode ser vista de forma isolada dos
outros subsistemas de gestão que existem em qualquer organização. O nexo comum
entre todos eles é a estratégia. Os resultados obtidos dependem em boa medida
do comportamento das pessoas no trabalho. Se esse comportamento atende de forma
adequada aos objetivos organizacionais, as probabilidades de sucesso são
maiores. Acredito que – tanto no setor privado como no setor público – chegou a
hora das pessoas.
Revista Fundap: Por que chegou a hora das pessoas?
Longo. Há um contexto em que atuam conjuntamente diferentes fatores.
Alguns deles têm forte relação com a própria evolução do trabalho humano. Nas
sociedades contemporâneas tal como as conhecemos, o trabalho humano tinha – até
agora – um baixo custo de reposição, um baixo valor agregado – de fato, os
valores fundamentais eram outros. Hoje, os processos de produção, especialmente
no setor de serviços, passam necessariamente pelas pessoas, por seu
comportamento, por sua qualificação. Há um crescimento significativo da
contribuiçãoque as pessoas podem dar para que se alcancem resultados. Na administração pública, os setores majoritários são os que utilizam
trabalho qualificado – a educação e a saúde representam uma porcentagem muito
alta do emprego público. Isso faz com que a variante “pessoa” esteja cada vez
mais presente. Mas existem outros fatores que afetam mais especificamente os
sistemas públicos. Podemos resumir dizendo que temos de fazer mais e melhor com
menos recursos. Esse é o desafio dos sistemas públicos contemporâneos. A sociedade
demanda serviços de mais qualidade e ao mesmo tempo exige que não se subtraiam
recursos imprescindíveis da economia produtiva. Isso está convertendo os
sistemas públicos e suas organizações em uma espécie de “panela de pressão”.
Alguns pensam que é impossível gerir bem em cenários de austeridade. Creio que
seja possível fazê-lo de forma criativa e empreendedora, assumindo-se o que
poderíamos chamar de gestão ofensiva das crises e substituindo-se um modelo já
ultrapassado de administração por um modelo de organização pública adaptado às
necessidades sociais.
Revista Fundap: Qual o papel dos gestores de recursos humanos?
Longo. Há um autor norte-americano que emprega uma interessante imagem
esportiva para falar aos gestores de recursos humanos sobre seu papel: “se vocês
querem dar respostas eficazes para os problemas das suas organizações, vocês
têm de estar na quadra, jogando com seus colegas; não podem ficar nas
arquibancadas assistindo ao jogo ou muito menos nos vestiários fazendo o resumo
do jogo”. O papel dos especialistas de RH é arregaçar as mangas e jogar com os demais dirigentes para que
as organizações tenham sucesso. Isso implica assumir muito claramente os
desafios da racionalidade econômica. Em cenários de austeridade, precisamos de
gestores públicos cientes dos custos daquilo que fazem.
Revista Fundap: Que novas habilidades são requeridas dos gestores de RH e dos
dirigentes públicos, em termos de gestão de pessoas?
Longo. Os gestores de RH precisam estar atualizados a respeito das
abordagens e ferramentas mais modernas. Devem ser bons em gestão por
competências, precisam saber como se gerenciam equipes humanas de forma mais
eficiente, como desenhar e administrar bons sistemas de informação, bons planos
de remuneração, adaptados aos diferentes níveis. Eis sua missão como
especialistas. Quanto melhores forem nesses campos, melhor será sua
contribuição. O mais importante, porém, é que compreendam que cabe a eles
fortalecer a capacidade de toda a diretoria para dirigir equipes humanas. O
papel dos especialistas em RH não é gerir diretamente as pessoas, mas facilitar
– para os outros – essa tarefa. Sendo assim, precisam ter a visão do cliente
interno – os dirigentes. Gosto muito da resposta que Bill Hewlett, um dos
fundadores da multinacional HP, deu quando lhe perguntaram por que criara o
Departamento de Recursos Humanos: “Para melhorar a qualidade da direção”. Isso
nos leva ao papel dos executivos, dos dirigentes. O grande desafio dos
executivos é perceber que, já que eles têm de obter resultados através de
pessoas, gerilas não apenas integra suas tarefas, é a sua tarefa mais
importante. Ao receberem seus salários, seus bônus, estão sendo remunerados por
seu comportamento como gestores eficazes de pessoas. Voltando às novas
tendências. Acredito que existe um denominador comum entre elas. Trata-se de
encontrar fórmulas eficazes para estimular a qualificação, por um lado, e o
compromisso das pessoas, por outro. Com relação à qualificação, o mais
destacado dos enfoques recentes é o de gestão por competências. É importante
perceber que o sucesso no trabalho não depende só do domínio de especialidades
técnicas, mas de uma série de qualidades relacionadas com o equilíbrio
emocional e o autoconhecimento, com a capacidade de relacionar-se com outras
pessoas, de lidar com emoções, de influenciar através da liderança. São
aspectos muito importantes, nem sempre levados em conta e estimulados pelos
processos de gestão mais costumeiros. Em termos de desenvolvimento do
compromisso, poderíamos listar diferentes tipos de instrumentos. Há a crescente
transferência do poder de decisão às pessoas, o empowerment, para que assumam
mais responsabilidade e, ao mesmo tempo, tenham mais iniciativa e sejam mais
criativas. Há o enfoque da gestão de desempenho, que alinha, dentre os
objetivos da empresa, o conceito de desempenho das pessoas, articulando novos
modos de relacionamento entre chefes e colaboradores. Há, ainda, orientações
para incrementar as oportunidades de desenvolvimento das pessoas dentro das
organizações, abrindo diferentes itinerários de evolução profissional que se
possam adotar em função de preferências e capacidades.
Revista Fundap: É possível para o gestor público abrir-se a esses novos enfoques?
Longo. Os gestores públicos enfrentam, na gestão de pessoas, restrições
maiores, derivadas das especificidades do setor público. Porém, cabem aqui
algumas observações. A primeira é que, evidentemente, algumas das
inflexibilidades deveriam ser eliminadas, ou pelo menos reduzidas. Acredito que
dispomos de marcos, de estruturas, de processos desnecessariamente rígidos,
mantidos por tradição cultural, e que já não respondem a nenhuma necessidade.
Por exemplo, contamos com definições de cargos pouco versáteis, pouco
polivalentes. Temos regimes de jornada de trabalho e de organização do tempo
excessivamente rígidos; barreiras que não permitem a mobilidade. Acredito que é
possível inovar e melhorar significativamente as práticas de gestão de pessoas.
O gestor público obtém legitimidade para reclamar da rigidez quando tenta
inovar e não consegue, mas não quando repete as rotinas que herdou de seus
antepassados, sem nunca pensar na menor inovação. Por isso, a meu ver, deve-se,
sim, reconhecer a rigidez – para poder superá-la –, e não utilizar a rigidez
como desculpa para a má gestão.
Revista Fundap: A gestão de RH deve ser aperfeiçoada da perspectiva dos chefes ou
a partir das pessoas?
Longo. Eu diria que de nenhum dos dois. Mas, sim, a partir dos
cidadãos, porque é da perspectiva da realização dos propósitos das organizações
públicas que a gestão de pessoas deve ser olhada. Uma organização pública não
pode considerar que tem a melhor gestão de RH possível quando seus funcionários
estão satisfeitos, se os cidadãos não estiverem. Isso é muito importante, pois
implica que as organizações públicas busquem estratégias muito bem formuladas e
coerentes com os programas de governo. É em função disso que a gestão de
pessoas vai acontecer. Mas cabe dizer aqui que a melhor estratégia não é capaz
de substituir a direção. Um dos problemas que o gestor público enfrenta – e que
o diferencia do executivo do setor privado – é o que eu chamo de “dilema da
estratégia”. Onde fica a estratégia? Está no programa eleitoral, depois
convertido em programa de governo. Mas o que acontece quando um projeto,
aparentemente prioritário, não recebe verbas do orçamento, ou quando, em função
de uma campanha pública, a prioridade muda? Às vezes as estratégias públicas
não estão tão claras. O gestor público deve saber se orientar nessa escuridão.
Ele não pode aguardar que as estratégias caiam do céu – e com clareza – para
então se mexer. Essa não é a forma correta de exercer a gerência pública.
Repito: a gestão pública não é tarefa fácil. A menos que se queira manter uma
visão burocrática; nesse caso, basta restringir-se às normas e não correr riscos.
Revista Fundap: Como convivem mérito e flexibilidade numa boa gestão de pessoas?
Longo. A flexibilidade tem de ser conquistada, mas não ao preço de
destruir garantias próprias dos sistemas públicos, necessárias para que estes
mantenham sua função. O mérito é aquela dimensão do emprego público que
pressupõe arranjos que assegurem o profissionalismo das pessoas. Isso exige
determinado grau de independência das pessoas em relação ao poder político, no
que se refere a nomeação e remoção. Exige preservar a administração de um
excesso de politização, de arbitrariedade, de despotismo, de clientelismo. Hoje
sabemos que os paísesque ordenam seu emprego público pelos princípios do mérito
criam, também, ambientes favoráveis ao bom funcionamento dos mercados e ao
desenvolvimento econômico. Há pesquisas recentes que fazem uma clara correlação
entre a existência de burocracias profissionais baseadas no mérito e um bom
funcionamento das transações no mercado. Defendo de forma muito contundente a
necessidade de se alinharem sistemas meritocráticos e práticas flexíveis. É uma
resposta à visão da evolução do emprego público, por fases, segundo a qual
primeiro se deveriam fortalecer sistemas meritocráticos, burocracias
weberianas, e só então desenvolver sistemas flexíveis. Acredito que, nos países
em desenvolvimento, em que ainda se observam claramente déficits nos sistemas
meritocráticos, é preciso superar as deficiências e ao mesmo tempo investir em
flexibilidade, porque as duas dimensões retroalimentam-se. Melhorias em termos
de flexibilidade reforçam os arranjos do sistema de mérito e vice-versa.
Revista Fundap: O objetivo seria fortalecer uma administração mais profissional...
Longo. Uma administração profissional não é simplesmente uma política
de governo – é a identidade de uma democracia sólida. Não há democracias
avançadas sem administrações profissionais. Posso considerar a democracia como
um sistema no qual há eleições a cada quatro anos; mas se quero aprofundar-me
no conceito de democracia, preciso falar do Estado de direito. Uma das
características substanciais do Estado de direito é uma administração
profissional, que apresenta uma dimensão de estabilidade e leis próprias. A
administração não é o prédio do governo da hora. Também não deve ser o cenário
para que funcionários refugiemse por trás de privilégios. É aí que entra a
flexibilidade. Nossas sociedades não podem manter burocracias weberianas
rígidas, orientadas estritamente pelas normas e não pelos resultados, incapazes
de prestar contas, e evidentemente também não podem migrar para a destruição
dos sistemas de garantia do mérito, porque o dano então seria ainda maior.
Revista Fundap: O senhor mencionou a prestação de contas. Qual o papel do controle
social sobre a gestão?
Longo. Os governos têm pendências a resolver em matéria de
transparência. Qualquer avanço nesse sentido parece-me extremamente positivo.
Além disso, devemos ter servidores públicos acostumados à transparência,
acostumados a prestar contas dos seus atos. Isso faz parte de uma mudança
cultural. Mas, a respeito disso, gostaria de dizer algo que vai contra a
corrente de certas idéias sobre participação social, especialmente na América
Latina. Melhorar a gestão pública é tarefa dos governos. Se os governos não o
fazem, igualmente não o fará a sociedade civil. Não podemos utilizar o controle
social como mecanismo para eximir os governos de suas responsabilidades. Em
países castigados pelo mau governo, pela corrupção, pela captura do Estado,
existe um estado de ânimo que estimula um certo tipo de pensamento: “com esses
políticos, com esses mecanismos, com essas classes políticas não há nada a
fazer; temos de criar os mecanismos de controle social, de pressão”. Defendo
que, apesar de tudo, a solução é continuar apostando em melhores governos. O
que eu quero dizer é que o contrário de uma má representação política é uma boa
representação política, e não a participação social. As democracias modernas
são democracias representativas. Os mecanismos de transparência, de prestação
de contas e de controle social são extremamente valiosos e importantes, mas não
substituem os mecanismos básicos. No fundo, precisamos de bons representantes,
de elites políticas de qualidade, de partidos políticos capazes de orientar as
vocações para os governos. Temos de nos esforçar para construir isso, e não
para substituir.
Fonte: Revista Fundap - Governo do Estado de São Paulo
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